terça-feira, 14 de agosto de 2012

Bebida e direção: qual a pena adequada?


Há discussão constante a cada caso de repercussão que envolve motorista bêbado que mata no trânsito. O problema nasce da escolha da tipificação legal feita pelo legislador quando decidiu elaborar a lei e reflete controversamente em todo momento que se verifica um caso dessa natureza.

O Código Brasileiro de Trânsito de 1997 – legislação nova, porém feita em período em que as leis penais saíam do Congresso a toque de caixa, para agradar a mídia – criou a figura do homicídio culposo no trânsito. Antes havia a figura geral do homicídio culposo que se aplicava também aos acidentes de trânsito, prevista no Código Penal.

A redação da lei não seguiu o padrão tradicional nem a técnica penal descritiva adotada no Brasil e, apesar de ser recente, não modificou o problema de mortes no trânsito – ao contrário, nosso país lidera as estatísticas desse tipo trágico de ocorrências.

O homicídio, ou seja, o delito de se tirar a vida de alguém, pode ser classificado como doloso ou culposo dependendo do que se costuma chamar de intenção do agente. Quando o agente tem intenção de matar, é doloso, quando não, culposo.

Em termos gerais, nenhum motorista sai às ruas com seu veículo para matar alguém e aqueles que têm tal intenção procuram outros meios para fazê-lo. Assim, a doutrina penal sempre entendeu que o acidente de trânsito com vítima fatal era homicídio – o motorista tirava a vida da vítima –, mas o era na modalidade culposa, vale dizer novamente, sem intenção. Isto significa que o motorista era e é apenado de acordo com a previsão legal para esse tipo de crime, que hoje é de 2 a 4 anos.

O cálculo para a pena é feito de acordo com a possibilidade de previsão pelo motorista com relação ao acidente. Quanto mais ele tem a capacidade de prever o acidente, mais responsável ele é por este e, portanto, mais alta deve ser sua pena.

Lembre-se que o crime culposo contém três elementos possíveis: a negligência, a imperícia e a imprudência. Negligência é o não cuidado quando deveria tê-lo. Imperícia é a não habilidade quando ela é exigida. Imprudência é a não reflexão quando ela é necessária. O agente poderia prever o resultado se fosse cuidadoso, se tivesse habilidade para tal ou se refletisse antes de agir.

A sociedade moderna é a sociedade da desatenção. Por quê? Porque são tantos os apelos cotidianos ao nosso cérebro em termos de informação que não conseguimos processá-la adequadamente. Fora o ritmo acelerado do dia-a-dia aumentado por uma tecnologia a qual, ao invés de fazer a vida melhor, nos impõe mais pressa e velocidade.

As pessoas entram em seus carros e se esquecem que estão interagindo com outras no espaço da cidadania, a via pública. Imergem em seus problemas e desligam-se do mundo. Assim, um dos aspectos que deveria ser tratado é a rememoração de que o trânsito é um meio de exercício de cidadania e, ao invés de serem criados deveres cujo descumprimento acarreta multas – e cria o antagonismo entre motoristas versus agentes de trânsito – deveriam ser efetivados mecanismos de conscientização sobre a prática de se transitar motorizado em uma via de acesso público (mas aí a indústria da multa entraria em falência).

Voltemos ao homicídio culposo. O motorista é condenado nessa modalidade. Como vigora a visão encarceradora em nosso ambiente penal, alguns pensam que a punição adequada seria a cadeia. Este é outro erro. O motorista que mata precisa de uma pena que o faça sofrer não pelo corpo, mas pelo pensamento. Ele deve refletir sobre a gravidade do delito praticado. A sanção adequada assim seria a prestação de serviços à comunidade, de preferência auxiliando em hospitais no atendimento a pessoas vítimas de acidentes de trânsito.

E o motorista bêbado? Ocorre o mesmo. Sua pena deve ser mais severa, porque ele foi mais irresponsável, mas não tinha intenção de matar ninguém. Talvez, até nestes casos, a lei poderia autorizar penalidade mais grave, o que ainda não ocorre.

Agora, o que não se pode aceitar, é, diante da deficiência da lei, se alterar a teoria penal para tentar punir pessoas de uma forma inadequada, apenas para pretensamente se divulgar que medidas mais rígidas são tomadas. Indiciar e processar um motorista, bêbado ou não, por homicídio doloso – usando o argumento de que tal motorista assumiu o risco de produzir o resultado – é um absurdo.

É uma violação do pensamento penal produzido nos últimos séculos e um retrocesso no sentido de se usar a aparência da lei para se praticar a ilegalidade de punir alguém com a privação da liberdade quando esta não é cabível.

Vale dizer, vendo-se a ineficácia da lei, usa-se de um subterfúgio mascarado de interpretação doutrinária para se colocar o agente na cadeia e supostamente dar respostas à sociedade. “Prendemos um motorista bêbado”, “fizemos justiça”!

Pode até ser que isso como mecanismo de comunicação acalme a sociedade, porque cadeia impressiona em termos criminais. Porém, resolver o problema mesmo, isso não acontece. E quem sofre são aquelas pessoas que perderam um ente querido.

Fonte: João Ibaixe Jr. é advogado criminalista, escritor e jornalista. Possui pós-graduação em Filosofia e mestrado em Direito. Foi delegado de Polícia e assessor jurídico da Febem, atual Fundação Casa, e coordenador de núcleo de pesquisa no Departamento de Pós-graduação em Direito da PUC-SP. Organizador do “Plano de Legislação Criminal” de Jean-PaulMarat e autor do livro “Diálogos Forenses”, é palestrante do Departamentode Cultura da OAB-SP e editor dos blogs Por Dentro da Lei Criminalista Prático. É também membro efetivo do Núcleo de Aprimoramento Jurídico e Integração Cultural da OAB-SP e presidente do Instituto Ibaixe, criado para desenvolver estudos e eventos jurídicos, filosóficos e culturais.   

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