sexta-feira, 5 de julho de 2013

Ex-aluno de direito, preso do DF lê Shakespeare para diminuir pena

Pesquisa da UnB mostrou que detentos leem até 12 vezes a média nacional.
Projeto prevê redução de 48 dias na pena de quem tiver nota a partir de 7.


Raquel MoraisDo G1 DF

Ex-estudante de direito, o presidiário Carlos Anderson Aguiar escolhe um livro da área na estante do Núcleo de Ensino e Aprendizagem (Foto: Raquel Morais/G1)Ex-estudante de direito, o detento Carlos Aguiar
escolhe livro área na estante do Núcleo de Ensino
e Aprendizagem (Foto: Raquel Morais/G1)
Apaixonado por literatura, o presidiário Carlos Anderson Aguiar, de 26 anos, não pensou duas vezes antes de escolher obras de Shakespeare para participar de um projeto desenvolvido por uma parceria entre a Secretaria de Segurança Pública e a Universidade de Brasília para remissão de pena por meio de leitura. A proposta é que os detentos que obtiverem média 7 ou superior na resenha de 12 livros lidos ao longo de um ano passem 48 dias a menos na cadeia.
“Escolhi [começar com "Os dois cavaleiros de Verona"] inspirado em "Romeu e Julieta", afinal, o cara que escreveu o maior romance do mundo certamente só fez coisa boa, não é?”, explica o detento Aguiar. “Eu gostei muito. Conta a história de dois amigos, é muito interessante. Li duas vezes para depois treinar o texto.”
Ex-estudante de direito, ele afirma que sempre gostou de ler, mas que teve o hobby cortado depois de se envolver em dois roubos na mesma noite, na Asa Sul, em 2011. Aguiar e dois amigos haviam saído de uma boate e, sob efeito de drogas e armados, levaram R$ 7 mil das vítimas. Atualmente ele cumpre a pena de 22 anos em um dos blocos da Penitenciária do DF I, no Complexo da Papuda.
Para quem quer ir embora e sair daqui de cabeça erguida, superar o erro, inclusive de alguma forma fazer uma terapia, esse projeto tem ajudado muito. O livro te tira da monotonia, porque aqui é todo dia a mesma coisa, a mesma comida, os mesmos assuntos, as mesmas pessoas. Isso cansa. Quero mudar e nunca mais nem passar na frente daqui"
Carlos Anderson Aguiar, ex-estudante de direito preso por dois roubos à mão armada
“Na hora eu nem pensei nas conseqüências, mas no dia seguinte bateu aquela sensação ruim”, lembra o jovem. “Para quem quer ir embora e sair daqui de cabeça erguida, superar o erro, inclusive de alguma forma fazer uma terapia, esse projeto tem ajudado muito. O livro te tira da monotonia, porque aqui é todo dia a mesma coisa, a mesma comida, os mesmos assuntos, as mesmas pessoas. Isso cansa. Quero mudar e nunca mais nem passar na frente daqui.”
O chefe do Núcleo de Ensino e Aprendizagem da unidade prisional, Dalton Neiva, conta que a iniciativa tem ajudado a controlar o índice de indisciplina entre os internos, além de diminuir o uso de remédios controlados. Cerca de 160 presidiários que têm bom comportamento participam voluntariamente do projeto, que começou em abril. Os livros são escolhidos nas bibliotecas da penitenciária.
Entre as obras mais procuradas estão as de Sidney Sheldon, Jorge Amado e Agatha Christie. Até então, as bibliotecas faziam cerca de 350 empréstimos por semana, mas a expectativa é de que o número suba a partir do projeto. De acordo com Neiva, a maior parte dos 7 mil livros foram doados, sendo 30% didáticos e 70% literários. Quando um preso quer um exemplar que ainda não chegou ao local, ele pode pedir à família, mas deve disponibilizar aos colegas depois de terminar a leitura.
O detento Bruno Leon Gomes Lima com um dos livros que pretende ler – O código Da Vinci, de Dan Brown (Foto: Raquel Morais/G1)O detento Bruno Leon Gomes Lima com um dos livros que pretende ler: "O código Da Vinci", de Dan Brown (Foto: Raquel Morais/G1)
É nítido: eles mudam o comportamento e o vocabulário, passam a ser ver como capazes de produzir algo. Também passam a ser vistos pelos pares de forma diferenciada. E o mais legal é que temos relatos de que passam a estimular os filhos a lerem também, por acreditar que essa é uma forma de transformar a realidade, de crescer"
Maria Luzineide Costa Ribeiro, pesquisadora da UnB que propôs o projeto
Isso aconteceu com o presidiário Bruno Leon Gomes de Lima, de 22 anos. Preso em 2009 depois de oito assaltos à mão armada a comércios de Taguatinga no período de três meses, e condenado a 56 anos de prisão, ele pediu à mãe que levasse "O código da inteligência", de Augusto Cury. O jovem diz que adorou o livro e que ficou orgulhoso depois que dois colegas de cela pediram a obra emprestada, após ouvirem os comentários dele.
Também voluntário no projeto, Lima garante que tenta sempre ler pelo menos um livro por semana, independentemente da possibilidade de remissão. “Tenho esse hábito desde os 12, 13 anos, mas aqui dentro ficou mais forte. A gente não tem muita opção do que fazer e, mesmo quando tem, é a minha preferida. É o que distrai minha mente e me impede de pensar em fazer besteiras.”
O rapaz afirma que assim que deixar a cadeia pretende cursar administração, educação física ou psicologia. Até lá, vai prosseguir com as leituras de Agatha Christie, Max Lucado e Augusto Cury, os autores favoritos. O gênero preferido dele é romance, de preferência que tenha alguma aventura.
Veja a lista dos livros mais lidos por presidiários do DF (Foto: Editoria de Arte/G1)
Acesso
Fã de Paulo Coelho, a quem se refere como “aquele que escreve histórias conturbadas”, Carlos Anderson Aguiar afirma que se tivesse mais oportunidades leria facilmente três livros por semana. O jovem já trabalhou em uma das duas bibliotecas da penitenciária e diz que devorava principalmente obras técnicas, como a "Lei Orgânica" e a Constituição Federal. No mesmo período ele garante ter lido tudo que havia de Jorge Amado, Rachel de Queiroz e Carlos Drummond de Andrade.
os 7 mil livros disponíveis nas bibliotecas da PDF 1, os mais lidos são de Jorge Amado e Agatha Christie. Média é de 350 empréstimos por semana
“Tentava apreciar os brasileiros, mas eles são meio ruins”, avalia. “Os ingleses têm a mente mais aberta. Mas tem um do Jorge Amado que eu gostei bastante e com o qual me identifiquei, que é "O terceiro travesseiro". Fala de homossexualidade e preconceito. E posso dizer que a gente sofre muito, especialmente em um espaço como aqui dentro”, diz Aguiar, gay assumido.
Para ampliar o acesso à leitura, o chefe do Núcleo de Ensino e Aprendizagem informou que pretende instalar outro projeto, chamado de Carrinho do Livro. Cada uma das 56 celas da penitenciária, com uma média de 14 ocupantes, vai receber seis obras e deve devolvê-las em cinco dias. “A ideia é humanizar e também usar, né? Não podemos ficar com isso parado.”
Presidiário reforma livro de biblioteca da Penitenciária do Distrito Federal I  (Foto: Raquel Morais/G1)Presidiário reforma livro de biblioteca da Penitenciária do Distrito Federal I (Foto: Raquel Morais/G1)
Neiva explica que antes de serem disponibilizadas, as obras passam por uma adaptação feita por uma oficina na própria unidade prisional. Os internos substituem a capa dura dos livros por uma em cartolina, e depois os catalogam. A medida evita que os itens sejam usados em possíveis rebeliões.
Veja os livros mais lidos no presídio feminino do DF (Foto: Editoria de Arte/G1)
“Se eu pudesse, passava minha vida inteira, preferia passar o resto dos meus dias, limpando chão na rua, mas perto da minha família, a voltar para cá”, desabafa o presidiário Aguiar. “Aqui é isso: ou você entra para se ressocializar ou você aprende o crime. A minha opção é tentar recuperar tudo que eu perdi, e vejo nesse projeto uma forma de começar a correr atrás desse objetivo.”
Pesquisa
O projeto de remissão pela leitura surgiu a partir de uma pesquisa de mestrado em Letras da UnB feita entre 2010 e 2012. A professora Maria Luzineide Costa Ribeiro aplicou questionários para 200 presidiários – 30 internas da Colmeia e 170 da PDF I – para verificar como o ócio influenciava na disposição deles para a prática. O resultado foi surpreendente: 70% deles lia entre 24 e 48 livros por ano, enquanto uma pesquisa feita pelo Instituto Pró-Livro e Ibope Inteligência apontava que a média brasileira em 2011 era de quatro por pessoa.
Pesquisa apontou que 70% dos presos liam até 48 livros por ano – 12 vezes a média nacional
Para ampliar o acesso à leitura, o chefe do Núcleo de Ensino e Aprendizagem informou que pretende instalar outro projeto, chamado de Carrinho do livro. Cada uma das 56 celas da penitenciária, com uma média de 14 ocupantes, vai receber seis obras e deve devolvê-las em cinco dias. “A ideia é humanizar e também usar, né? Não podemos ficar com isso parado.”
“O interessante é que a gente notou a formação de uma espécie de comunidade leitora. Eles trocam informações entre eles, comentam que tal livro é interessante”, diz. “Outra coisa: os policiais, mesmo que indiretamente, também contribuem. Na hora de entregar o livro, comentam o que os outros internos da outra cela disseram a respeito, que parece bom porque alguém falou.”
Detentos catalogam livros de biblioteca da Penitenciária do Distrito Federal I  (Foto: Raquel Morais/G1)Detentos catalogam livros de biblioteca da PDF I
(Foto: Raquel Morais/G1)
Maria Luzineide afirma que o interesse pelo tema surgiu da experiência dela no ambiente carcerário. Foram 14 anos atuando como professora de português em todas as unidades prisionais do DF e cinco anos como voluntária. Nesse período, ela diz ter visto uma mudança no perfil dos internos, que passaram a pertencer a uma faixa etária mais jovem: de entre 25 e 30 anos para entre 18 e 24 anos.
Por meio da pesquisa, Maria Luzineide diz que foi possível perceber a importância da leitura para alterar a vida dos presidiários. “É nítido: eles mudam o comportamento e o vocabulário, passam a ser ver como capazes de produzir algo. Também passam a ser vistos pelos pares de forma diferenciada. E o mais legal é que temos relatos de que passam a estimular os filhos a lerem também, por acreditar que essa é uma forma de transformar a realidade, de crescer.”
Os resultados levaram a professora a apresentar a proposta para a UnB e para a Vara de Execução Penal, do Tribunal de Justiça do DF. O projeto foi autorizado e oferece uma alternativa para os detentos que não querem ou não podem trabalhar (a cada três dias de trabalho, têm um a menos de pena) ou não querem ou não podem estudar (a cada 12 horas, um dia a menos na prisão).
Parte do acervo das bibliotecas da Penitenciária do Distrito Federal I  (Foto: Raquel Morais/G1)Parte do acervo das bibliotecas da PDF I
(Foto: Raquel Morais/G1)
Projeto
Como é um projeto de extensão da UnB, estudantes da instituição são os responsáveis por avaliar todos os meses as resenhas feitas pelos presidiários.
A avaliação é presencial e ocorre em uma terça-feira. Além disso, a cada semestre os alunos se reúnem com os detentos para discutir as obras lidas.
O diretor da PDF I, Celso Wagner Lima, afirma que a ideia foi muito bem recebida na instituição. “Os presos que estão engajados apresentam menos problemas de comportamento. Eles sabem que perdem mesmo o benefício e eles não querem isso.”

Para participar, os presidiários têm que ter passado por observação durante um ano, sem apresentar mau comportamento. Entre as faltas disciplinares estão agressões, desrespeito a servidores ou colegas e porte de drogas. Todos cumprem pena em regime fechado. A penitenciária tem quase 3 mil detentos.
Maria Luzineide defende que o projeto pode mudar a forma como as pessoas vão olhar para a cadeia. “Essas pessoas não foram parar lá por acaso, houve uma transgressão. Mas elas vão cumprir a pena e, nesse período, qualificar o tempo ocioso. E o melhor: por meio da leitura, vão retornar ao convívio social.

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