quinta-feira, 10 de julho de 2014

Sentença Penal e Dosimetria da Pena – Teoria e Prática – Cláudio Mendes Júnior

(Trecho extraído da obra: Sentença Penal e Dosimetria da Pena – Teoria e Prática – Cláudio Mendes Júnior)

O  homem,  ser  gregário  por  natureza,  vive  em  contínua  interação com seus semelhantes num processo constante e dinâmico em que os conflitos necessariamente advêm como consequência das naturais discordâncias de posicionamentos nos diversos setores da vida e consequente tentativa de imposição ao próximo das medidas que a cada um parecem justas.

É inerente ao homem a ideia de punir para restabelecer a harmonia e a ordem eventualmente alteradas por ato de outrem. Seja no âmbito familiar, religioso, político ou social, o desvio das condutas tidas por padrão, desde sempre ensejou a aplicação de medidas correicionais.

Nos primórdios quando o homem ainda vivia em estado evolutivo comparável ao dos selvagens, as divergências humanas eram solucionadas  caso  a  caso  pelos  próprios  envolvidos  na  disputa,  prevalecendo  o status do mais forte em detrimento do mais fraco.

Era o estágio inicial da autotutela. Não havia ainda o Estado. Vigia a lei do mais forte. A vingança privada muito bem sintetizada na expressão “quem  com  ferro  fere  com  ferro  será  ferido”,  era  o  instrumento  de solução das lides interindividuais. Em momento posterior passou-se da vingança privada na qual os instrumentos de punição e restabelecimento da normalidade alterada eram impostos  caso  a  caso  ao  alvedrio  do  mais  forte, 
 à  coletiva  ou  públicaonde paulatinamente o direito de aplicação de punições fora transplantado para o chefe do clã, ou tribo, formando-se assim, o embrião do que seria o sistema punitivo do Estado. Aquele membro do clã que cometesse alguma conduta discrepante do código de normas da comunidade sofreria as consequências do seu ato na medida em que estaria sujeito à imposição de penalidades, que variavam em quantidade e qualidade em cada núcleo humano. Neste momento ainda prevalece um estágio pré-civilizado, onde predominam imposições de ordem moral tais como os tabus e totens, diferenciando-se do sistema de autotutela anterior pela maior organização do infligimento da pena bem como pela transferência do poder de punir que sai das mãos do particular para encontrar ancoradouro e fundamento de validade na aceitação de toda a coletividade, abandonando o individualismo  da  vingança  privada  na  qual  a  própria  pena  era  escolhida  e aquilatada pela vítima.

Era a vítima que imprimia o castigo e sua quantidade, não havendo qualquer segurança jurídica para o agressor punido nem qualquer preocupação com segurança jurídica sob o ponto de vista social; todos eram vítimas e carrascos em potencial, uns dos outros. Esse modelo de controle era caótico, anarquizado e desorganizado.

A história humana demonstra que onde há pessoa humana há sociedade e necessariamente haverá meios de contenção de condutas, sejam estes manejados pelos próprios atores da vida em sociedade, como o era na autotutela e no dente por dente, sejam por uma instituição adrede criada com este fim (Estado)2.

A sua condição de ser sociável por natureza, impõe ao homem a aceitação de limites sem os quais prevaleceriam o caos e o anarquismo. Surge com   o   crescimento   populacional   e   o   desenvolvimento   sociopolitico-econômico uma comunidade com extensa gama de situações empíricas que impõe a cada individuo o respeito ao direito do outro. Nasce daí a necessidade do estabelecimento de limites à atividade individual em respeito a direitos do outro. A necessidade de organização da atividade punitiva com a padronização das condutas aceitas pelo corpo social e repressão àquelas que não se coadunem com o sentimento coletivo.

Sem  enveredar  na  discussão  teórico-filosófica  concernente  às  diversas teorias que buscam fundamentar e descrever a origem do Estado como ente político capaz de agregar todo o poder que emerge das individualidades, importa esclarecer que, como instituição dotada de poder de coerção,  o  Estado  surgiu  como  necessidade  do  estágio  de  desenvolvimento no qual o homem se encontrava, decorrente de natural e paulatina imposição de fatores variados de ordem sociopolítico-econômicos, e passou a concentrar todo o poder-direito de punir, exercendo o que Max Weber nominou ‘monopólio legítimo da força’, substituindo-se ao particular e subtraindo-lhe, definitiva e quase completamente, o direto de fazer justiça com suas próprias mãos.

A pena nesta fase inicial justifica-se pela necessidade de o Estado reorganizar (ou rearmonizar) o sistema social que foi seriamente afetado com  a  conduta  de  um  de  seus  súditos.  Conduta  esta  que  se  reveste  decerta gravidade e afeta seriamente ao direito de outrem e de forma indireta o próprio Estado como mantenedor da paz social. Ao passo em que o Estado  confiscou  o  direito  de  punir  com  exclusividade  retirando-o  dos particulares individualmente, passou a proibi-los de fazê-lo salvo em situações  de  extremada  excepcionalidade,  tal  como  na  legítima  defesa  e estado de necessidade. No sistema estatal de aplicação de penas acresce-se  a  característica  marcante  da  coercitividade,  consistente  no  poder  de impor a sanção ao cidadão sem permitir que este se insurja uma vez que esse poder punitivo se legitima a partir da própria autorização prévia de toda a sociedade da qual ele mesmo faz parte.

É verdade que esta legitimação nem sempre foi decorrente da vontade popular, como se dá na maioria dos casos, modernamente. Ao longo da história observamos que o poder do soberano justificou-se ora por estar  associado  a  uma  divindade  capaz  de  distribuir  benesses  e  punições, momento no qual o próprio soberano era alçado à condição de representante terreno da divindade (teocratismo), ora, como ocorria nos Estados absolutos, os poderes convergiam  às  mãos  do  governante  sem  qualquer legitimação popular impondo-se pela força.

Com o advento da independência dos Estados Unidos da América e da Revolução Francesa, uma nova fisionomia de Estado surge no cenário internacional, assumindo ares de democracia tendo como elemento justificador do poder a vontade popular, isto é, o poder como emergente do povo.  Toda  essa  evolução  demorou  séculos,  mas  dois  momentos  merecem maior enfoque neste ensejo.

O primeiro deles foi a idade média, conhecida por alguns historiadores como idade das trevas. Os Estados nacionais criados a partir da organização feudal eram governados por soberanos absolutistas, isto é, que acumulavam em suas mãos todo o poder. O grande ícone deste momento político  foi  o  rei  Luís  XIV  da  França,  que  teria  cunhado  a  expressão “L’État c’est moi”   (O Estado sou eu), que retrata bem o momento de repressão absolutista vivido naquela sociedade. O outro momento que significou um marco em todos os segmentos foi o surgimento do movimento iluminista que trouxe ao cenário pensamentos de ordem liberal em todas as áreas do conhecimento e influenciou movimentos de cunho democrático  como  a  independência  das  colônias  inglesas  na  América  (1776)  e  a Revolução Francesa (1789).

À medida que se modificou a formatação política do Estado desde as trevas da idade média até às luzes da modernidade e os dias atuais, a  pena  como  injunção  e  manifestação  de  seu  poder  punitivo,  foi  ganhando contornos diferentes, retratadores do momento histórico vivenciado, moldando-se inclusive por força de vetores de ordem macroeconômica.

Para adquirir esta obra, acesse: http://goo.gl/dYM0yk

NOTAS:

[1] Optei pela expressão ‘coletiva’ uma vez que ‘pública’ pode dar a falsa ideia de que naquele estágio do desenvolvimento humano já se estabelecia a distinção entre público (interesse coletivo) e privado (interesse individual).

[2] É de Ulpiano a máxima: “ ubi homo ibi societas; ubi societas, ibi jus”, que significa, onde está o homem, aí está a sociedade; onde está a sociedade, aí está o direito.

Nenhum comentário:

Postar um comentário